sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

VOCÊ SABE?!?... Os escritores e seus gatos – Parte II – “uma aliança entre seres livres”.

por Mires Batista Bender

Os gatos são conhecidos por sua autonomia. Eles escolhem a quem amar sem levar em conta a atenção que recebem e adquirem hábitos de higiene pessoal sem que seja preciso “levá-los lá fora” para que se sintam confortáveis. Em testemunhos de escritores encontramos relatos sobre essa independência. De acordo com o “best-seller” argentino Osvaldo Soriano “no es posible usar al gato para nada personal, no hay manera de privatizarlos". Na trilha do musical de Chico Buarque de Hollanda, os gatos proclamam sua autossuficiência em versos bem humorados: “Nós, gatos, já nascemos pobres/ Porém, já nascemos livres/ Senhor, senhora ou senhorio/ Felino, não reconhecerás”. Mesmo o mais rabugento dos escritores, o “pai dos beatniks” William Burroughs, conhecido pela verve sarcástica, mostra o seu lado doce e sentimental revelando, no livro O gato por dentro, que os gatos podem ser excelentes espelhos da condição humana. Para ele, até mesmo a fúria de um gato pode ser bela.


Para Winifred Carriere (autor de Cats 24 Hours a Day e de Cats: a Practical Guide for Cat Owners), “o gato é o espelho da mente do ser humano, da personalidade e atitudes de seu dono; da mesma maneira que o cachorro reflete a aparência física do dono”. A opinião do escritor pode ser científicamente provada. Uma equipe de pesquisadores da Universidade do Texas realizou uma pesquisa entre quatro mil e quinhentas pessoas, buscando identificar traços típicos, de acordo com sua preferência por cães ou gatos. Para os pesquisadores, a preferência pode ser um indicador de sua personalidade. Segundo os resultados alcançados pela pesquisa, as pessoas que gostam mais de gatos, tendem a ser mais introspectivas, porém, possuem maior facilidade de adaptação, pois são vanguardistas e aceitam ideias novas de forma mais rápida. Já os apreciadores de cães, tendem a ser mais extrovertidos, sociáveis.


Dizem que, para se gostar de gatos, é preciso ter a alma livre, sem a pretensão de querer dominar sempre. De acordo com o escritor Jorge Luis Borges, o escritor é um anarquista – no sentido lato da palavra – não costuma ter horário para trabalhar e sua tarefa raramente é realizada por encomenda. Ou seja, faz o que quer. O mesmo acontece com os gatos. Para Borges, a relação entre escritores e gatos é uma aliança entre seres livres.


Os gatos são independentes e nada oportunistas. Eles recorrem aos próprios meios e buscam seu alimento, quando não lhe é dado o que comer. Um felino escolhe seu dono e para atrair a atenção de um gatinho não basta um “vem cá, bichano”. Ele precisa de seu tempo para decidir se gosta de alguém. Porém, depois de conquistada sua amizade será amigo para sempre.


Os gatos parecem ser a companhia ideal para os escritores. A eles são dedicadas diversas publicações todos os anos. Em algumas delas, encontramos frases e versos notáveis. Sobre uma personagem gato citou – em A disciplina do amor – a escritora Lygia Fagundes Telles: Ele fixaria em Deus aquele olhar verde-esmeralda com uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende, mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo.”



Diversos autores parecem concordar com as semelhanças entre os escritores e os gatos. Alguns até lhes atribuem atitude de escritor. Segundo Amanda Costa “gatos escrevem por telepatia...”. Bem, para por um ponto final sobre a questão, disse Aldous Huxley: “Se quiser escrever, arranje um gato”.

SE VOCÊ GOSTOU DESTE TEXTO, VAI ADORAR CONHECER TAMBÉM A OS ESCRITORES PREFEREM OS GATOS, PUBLICADA EM MAIO DE 2014. 



* Mires Batista Bender, doutora em Letras pela PUCRS, acredita que as palavras são magia e fez delas seu ofício. Professora de línguas e Literatura criou o primeiro fã-clube de escritor para homenagear a união entre seus maiores prazeres: pessoas e poesia. Interessada e curiosa por todos os temas que fazem fluir o poético, conversa sobre eles nesta coluna...

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Ensaio sobre a rotina: FELICIDADE EM VINTE VEZES SEM JUROS

por Nurit Gil

 Sou uma entusiasta do capitalismo, entendam bem. Mas realmente a extravagância saiu do controle, em minha não tão humilde opinião.
O mercado de clichês - ops, de casamentos - por exemplo:
- Ana, quer casar comigo?
(Ajoelha-se, abrindo um anel de muitos quilates parcelado em 85 anos)
- Sim, Adalberto, sim, mil vezes sim!
(Choro)
Pronto. Tudo acontecido conforme o protocolo por ambos no pré-enlace, prosseguem com o planejamento.
- Tulipas brancas.
- Em todas as mesas?
- Sim, e no palco.
- Mas e o orçamento?
- Adalberto, sonho com este dia desde a minha primeira infância
- Até com as tulipas?
- Brancas.
Nada que não se possa parcelar em mais alguns anos. Juntamente à banda de vinte integrantes, show de escola de samba, vestido da noiva, cortejo e daminhas, comida para quinhentos convidados, móveis de design, pufs descontraídos, brigadeiros gourmet, picolé da moda, havaianas (as legítimas) e bar de caipirinha. 
- O que? Você quer que tenha um massagista no banheiro?
- No casamento da Júlia teve.
- Pirou?
- Lembra? Meu sonho...
As feiras de casamento estão aí para mostrar que isso é um pacote extravagante de tem-que-ter - delírios included - sem o qual, desculpe, você não será feliz para sempre. Então bora hipotecar os primeiros vinte anos da vida a dois.
Repito quantas vezes forem necessárias: faço parte do fã clube do capitalismo. Mas ando incomodada com esta felicidade meio pasteurizada. Ser feliz para sempre tem a ver com mãos dadas, olhar nos olhos e rir da piada do outro, mesmo que menos por graça e mais por amor. O pacote pelo qual pode-se pagar, sinto muito, é delírio sem garantia de nada...
- Estava lindo o casamento, né?
- Sei lá, achei meio estranho o gosto do bem-casado trufado
.... Nem do dinheiro de volta.


*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense. Nurit Gil lançou recentemente seu primeiro livro, A SENHORA PERFEITINHA E OUTROS TEXTOS, pela Buqui editora.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Lendo Fantasia: A MATRIZ DE MATRIX

Cover of "Total Recall"
Total Recall
por Patrícia Degani

Is this the real life? Is this just fantasy?
(Queen, Bohemian Rapsody, 1975, do álbum A Night at the Opera

 Um dos temas mais perturbadores da literatura fantástica é a possibilidade de que nossa vida não seja real - que tudo não passe de um sonho ou simulacro. Um dos principais escritores do gênero que exploram essa possibilidade é Philip K. Dick. Um exemplo é o filme O Vingador do Futuro (Total Recall, 1990, Paul Verhoeven), baseado no seu conto We Can Remember It for You Wholesale. No filme original, estrelado por Arnold Schwarzenegger, um operário decide fazer um implante de memória para escapar da rotina. Em nenhum momento do filme sabemos se o implante funcionou ou não, se a seqüência de eventos se passa na mente do protagonista ou de fato aconteceu. 

Blade Runner Se considerarmos que nossas memórias são parte indissociável do nosso eu, como afirmava Santo Agostinho nas Confissões e como tristemente confirmamos ao conhecer alguém que sofre de Alzheimer, não ter certeza de suas memórias tem um efeito devastador na psique. Ora, nossas lembranças são mesmo, em parte, inventadas: são impressões psicológicas profundas geradas por determinados fatos na nossa vida. Se não tivermos outras testemunhas e não pudermos comfrontá-las com registros, como ter certeza da veracidade das nossas recordações? Quantas vezes todos nós já fomos surpreendidos por descobrir que temos uma memória falsa do ponto de vista dos fatos, porém intensamente emocional? Você poderia jurar que usava um casaco rosa quando ganhou aquele presente especial de Natal, mas quando vê a foto no álbum da família, descobre que está de blusão amarelo...entretanto, se soubéssemos que todas nossas recordações não passam de uma ilusão, entraríamos em crise. A possibilidade de forjar uma personalidade com memórias artificiais é retratada nos andróides do filme Blade Runner - O Caçador de Andróides (1982, dirigido por Ridley Scott, baseado em Do Androids Dream of Electric Sheep? de Philip K. Dick). 

Cover of the Brazilian release, depicting the ...E o que dizer dos sonhos? No violento animê O Fantasma do Futuro (Ghost in the Shell - Kôkaku kidôtai, 1995, de Mamoru Oshii) uma policial andróide enfrenta um perigoso criminoso com o sugestivo nome de Puppet Master (Titereiro, ou mestre das marionetes). Se as memórias são fabricadas, podem ser construídas por um terceiro que nos manipularia como marionetes. Futuros distópicos com interações homem/máquina nas quais não se sabe mais quem é o quê são recorrentes na literatura chamada de cyberpunk. O principal livro do gênero é Neuromancer de William Gibson, publicado em 1984. O romance é escrito em uma linguagem cheia de gírias futurísticas, na tradição de A Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1962, Anthony Burgess).  Em Neuromancer o hacker Henry Dorsett Case é pego roubando de seu empregador, que se vinga afetando o seu sistema nervoso central e o impedindo de continuar a se conectar na Matrix, rede social e de internet na qual todos interagem no futuro. Henry Case envolve-se em um trabalho clandestino para conseguir a cura e um novo pâncreas, estragado pelo uso de drogas. A missão o envolve com duas Inteligências Artificiais (AI), Wintermute e Neuromancer. Consciências podem ser copiadas para a Matrix por Neuromancer, e passam a ter uma existência puramente virtual.

Cover of Em 1988, saiu o filme Cidade das Sombras (Dark City, 1988, de Alex Proyas). Esteticamente, Dark City faz uma homenagem aos filmes do expressionismo alemão como O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920, Robert Wiene) e Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922, F. W. Murnau). O espectador começa a ver um filme que, aparentemente, se passa na década de 30, até uma reviravolta espetacular, principalmente quando assistida na tela grande do cinema. Explorando uma temática parecida, em 1999 foi lançado o filme 13. Andar (The Thirteenth Floor, 1999, de Josef Rusnak). Mortes misteriosas começam a acontecer em uma firma que está criando um jogo em realidade virtual imersiva. Para jogar, é preciso ligar sua consciência à máquina e "vestir" a aparência de um dos personagens. O protagonista, Douglas Hall, começa a investigar o mistério e tem uma revelação inesperada. O filme é baseado no romance Simulacron-3, 1964, de Daniel F. Galouye.
poster for The Matrix 
No mesmo ano, mas mais tarde, foi lançado o filme Matrix (1999, irmãos Wachowski), combinando elementos do cyberpunk e de todos esses antecedentes. O mix dos irmãos Wachowski provou ser empolgante, porém de fôlego curto nas continuações. Sem ter planejado uma trilogia desde o início, os seguintes Matrix Revolutions e Matrix Reloaded não conseguiram corresponder à expectativa. O principal problema foi a indefinição de gênero. Quando Neo em Matrix Revolutions consegue manipular a "realidade", desconfia-se de um efeito "bonecas russas": aquela ainda não é a realidade, ele apenas saiu de uma simulação para cair em outra. Qualquer explicação que os diretores dessem deveria levar em conta que a premissa do primeiro filme era a de uma película de ficção "científica" (com uma certa liberdade em relação às Leis da Termodinâmica, mas ainda assim). Os protagonistas não deveriam ter poderes mágicos; eles são hackers do sistema da Matrix. Se a outra realidade também é manipulável, ela também deveria ser uma Matrix. Um sistema de magia implica na existência de um mundo sobrenatural, e isso não está na premissa de um mundo cyberpunk

Cover of
Com uma trama melhor resolvida é o animê Paprika (Papurika, 2006, Satoshi Kon). Nesse desenho, um time de cientistas é capaz de entrar nos sonhos de terceiros como um novo tipo de terapia psicoterápica. No entanto, alguém começa a usar o sistema para manipular e enlouquecer as pessoas e a protagonista precisa encontrar o responsável antes que haja mais vítimas. Quatro anos mais tarde saiu o filme A Origem (Inception, 2010, Christopher Nolan), também falando de sonhos dentro de sonhos e a dificuldade de saber o que é real e o que é sonho.

Os autores de Ficção Científica costumam explorar mais esses conceitos do que os de Fantasia, uma vez que a explicação para o que está acontecendo costuma envolver tecnologia e não metafísica. Uma exceção é o filme Os Agentes do Destino (The Adjustment Bureau, 2011, George Nolfi), também baseado na obra de Philip K. Dick, The Adjustment Group. No filme, o político David encontra a bailarina Elise em um banheiro masculino (isso mesmo), porém ao tentar se aproximar da moça começa a esbarrar em estranhos obstáculos. O filme é bom (o final poderia ser melhor) e bem construído, com uma explicação mais sobrenatural do que científica, o que o torna difícil de ser classificado. Como o leitor que me seguiu até aqui observou, por mais que um tema já tenha sido tratado por filmes e livros, sempre é possível criar algo novo e interessante. Um escritor não precisa de uma história que nunca foi contada, mas sim de uma abordagem nova. Espero ter dado dicas de bons filmes e boas leituras para os amantes do gênero. Até a próxima!
Águia

 *Patrícia Degani é mestre em Filosofia Antiga e Medieval pela PUCRS. Leitora e pesquisadora da literatura de Fantasia, escreve regularmente no blog Lendo Fantasia. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos.