segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Lendo Fantasia: ANDANDO EM CÍRCULOS

C. S. Lewis
C. S. Lewis (1898-1963)
O antigo professor de Literatura Medieval e Renascentista de Cambridge, C. S. Lewis, não escreveu apenas As Crônicas de Nárnia. Sua obra inclui inúmeros outros livros de ficção e não-ficção. Um dos meus textos favoritos de Lewis é um discurso que ele fez em uma palestra em 1944. O texto se chama The Inner Ring.

Acho o título meio difícil de traduzir. Lewis fala de grupos, turmas, patotas (círculos) que se formam naturalmente pela convivência humana. Todos nós participamos de vários. Quando crianças, temos nossa turma de amigos, por exemplo.

Porém existem dois tipos de círculos. O primeiro é aquele que é formado pelo amor em comum. Se você gosta de jogar videogame, pode ser que tenha um grupo de amigos que se reúnem para jogar. Se mais alguém quiser jogar também, o círculo está aberto: basta que o novato traga a sua CPU. O que reúne as pessoas é o prazer legítimo de fazer algo divertido juntos. O mesmo se você gosta de ler. Quanto mais gente gosta de ler, melhor; se você encontrar outras pessoas que também gostam de ler, com prazer você fará novas amizades e conversará com elas sobre a sua paixão em comum.

O segundo tipo de círculo é aquele que confere uma exclusividade para quem participa. Eles aparecem pela primeira vez na nossa vida quando entramos na adolescência. O grupo das Pattys do colégio. O grupo dos nerds. E tantos outros. Nesses grupos, não raro a graça de participar é a suposta superioridade que ser membro confere em relação às outras pessoas. São grupos excludentes. Se os nerds se reúnem para se darem um rótulo de inteligente ao invés de compartilhar seu amor pelos livros, quadrinhos, Sci-Fi e coisas do gênero, então formaram um Inner Ring. Se as Pattys estão juntas com o objetivo de exibir suas bolsas Victor Hugo e a roupa da moda aprovada pelo grupo e não porque realmente gostam de fazer coisas juntas, então elas formaram um Inner Ring.

O último parágrafo não soa como um fenômeno agradável ou bacana, não é mesmo? Segundo Lewis, essa vontade de pertencer ao círculo para ganhar um rótulo qualquer, um atestado de inteligente, cool, popular, vencedor, é a principal causa das nossas maldades cotidianas. O escritor é bem realista: dificilmente alguém vai aparecer na nossa frente com um saco de um milhão de dólares e tentar nos corromper. Mas quantas maldades, quantas grosserias todos nós já cometemos para sermos aceitos em um grupinho assim!

A fome de status, a vontade de ganhar um atestado de intelectual, de bem-sucedido, de "pegador", seja o que for, desperta o pior em nós. Você é capaz de renegar um amigo de infância porque ele não é cool o bastante, destratar sua tia distante porque ela não é refinada o suficiente, fazer grosserias para o seu parceiro porque ele não se parece com uma modelo ou um ator de cinema. Tudo para se ajoelhar no altar de algo vazio e sem significado: afinal, aquelas pessoas não estão reunidas pelo amor a algo, mas para disfarçar o seu próprio vazio.

Labour of the Danaids
The Labour of the Danaids, 1878
(oil on canvas), Weguelin,
John Reinhard (1849-1927)
Lewis fecha o texto explicando que a busca por esses rótulos é como o castigo das Danaides: encher eternamente um vaso furado. Ele dá o exemplo do violinista que quer pertencer à Orquestra de Câmara da sua cidade. Se ele quer entrar para ter um salário fixo, tocar com bons músicos e trabalhar um repertório que o fascina, será feliz. Se o instrumentista quer apenas se exibir por aí dizendo que toca naquela orquestra, logo sua felicidade de ter entrado se converterá em amargor. Sua alma cheia de furos vazará a pouca alegria que nela colocou. Se tiver azar, irá buscar um novo grupo, um novo círculo, ainda mais prestigioso que o primeiro. E encontrará novamente o vazio. Se tiver sorte, chegará o momento da Verdade e perceberá que o problema é ele, e não a orquestra. Citando o texto de Lewis:



Until you conquer the fear of being an outsider, an outsider you will remain.
Interpretando o original em inglês, eu diria: enquanto você não derrotar o medo de se sentir rejeitado, você continuará se sentido sempre aquém. Quando não tiver mais esse medo, o tonel se quebrará e virá a paz. Ao invés de tentar se engrandecer, descobrirá que a verdadeira realização é ser exatamente aquilo que se é, e fazer o que se faz pelo amor às coisas em si mesmas.


 *Patrícia Degani é mestre em Filosofia Antiga e Medieval pela PUCRS. Leitora e pesquisadora da literatura de Fantasia, escreve regularmente no blog Lendo Fantasia. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos, pela qual ministrará, no dia 25 de outubro próximo, o curso ESCREVENDO FANTASIA, que está com as inscrições abertas.

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