quarta-feira, 3 de setembro de 2014

ENSAIO SOBRE A ROTINA: De 2014 para 1968

por Nurit Gil



Queridas mulheres,
 
Amanhã vocês participarão de um concurso de miss e, como forma de protesto à situação da mulher, planejam queimar soutiens. Por isso escrevo esta carta, direto do futuro, para contar: 
 
O tiro saiu pela culatra!
 
Pois é. Sei que a intenção de vocês é das melhores, que é insustentável nossa situação oprimida numa sociedade machista e tal. De fato, conquistamos direitos, postos de trabalho e nem sempre somos chamadas de histéricas quando opinamos de forma contundente. Sim, opinamos e isso é um ganho e tanto.
 
Mas mesmo com toda esta transformação na sociedade, acreditem: nossas casas continuam sujando, pastas de dentes ainda não proliferam por osmose nos armários, filhos não se criam sozinhos e maridos pedem canja quando estão doentes. Mas agora, nós temos que trabalhar para complementar a renda familiar. Não somos artistas, vanguardistas ou idealistas. Somos proletárias. Batemos cartão, temos metas e almoçamos com ticket refeição. Enquanto isso, lá em casa, a roupa acumula, a funcionária não apareceu, ainda bem que sua mãe tirou o dia para cuidar do bebê, a pasta de dentes acabou e terá pizza congelada para o jantar. Culpa aqui e culpa lá. Freud jamais poderia sonhar com tamanha popularidade no século XXI.
Vocês devem estar se perguntando: e os homens? Ajudam mais, mudaram sim. Mas ainda detestam trocar fraldas, não tem glândulas mamárias e apesar de terem virado gourmets, raramente sabem que para o arroz ficar soltinho, precisa ser cozido em fogo baixo. Fora que, conviver com uma parceira poderosa ao lado, não é coisa pra qualquer macho.
 
Entendem? Está tudo atrapalhado. Claro que existem mulheres felizes com esta situação toda, mas, se vocês não queimarem os soutiens, elas serão a vanguarda de nossa classe. Um título interessante. Quanto ao resto de nós, deixem-nos trocar receitas de ovo poche, levar nossos filhos na escola e fazer artesanato. Sem peso na consciência. Se der, trabalharemos meio período. Um plus. E usaremos o dinheiro extra para algo que não seja bancar babá, foguista, enfermeira e motorista.
 
Sei, sei, tem a questão dos padrões de beleza impostos. Então deixa eu contar: vocês terão descendentes intitulando-se mulheres-morango, melancia e jaca. Se o nome não for auto explicativo, eu esclareço: deu mesmo tudo errado! Até nós, mais básicas e pós-graduadas sabemos que 250ml de silicone ficam super proporcionais, que o blush da MAC é incrível e todos as demais artimanhas sensuais.
 
É século XXI, mas homens ainda gostam de bunda, mulheres ainda não gostam de dividir a conta e crianças ainda passam a primeira infância gritando do banheiro "Manhê, acabei!".
 
Portanto, amanhã, peço singelamente: desfilem. Mandem beijos. Ou fujam do padrão - individualmente, sem rebeldia - desde que fiquem graciosas para a história. Porque nós, do futuro, não estamos dando conta de tudo-ao-mesmo-tempo-agora.



*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.

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