quarta-feira, 30 de julho de 2014

Ensaio sobre a rotina: IDEOLOGIA: APLICAÇÃO PRÁTICA

por Nurit Gil



"Se beber, não dirija"
(Sabedoria popular)

- Alguém escutou a campainha?
O papo estava tão animado, que não sabiam ao certo se o som era real ou fruto da imaginação, após alguns - vários - goles de espumante. Eram três casais que organizavam encontros sempre divertidos. Pediam pizza, bebiam, gargalhavam. Falavam sobre as ações, a novela e abobrinhas em geral, antes do papo das mulheres invariavelmente recair sobre o trio casa-filhos-empregada. Todos casados havia mais de uma década, tinham uma relação agradável desde os tempos de namoro, quando os meninos eram colegas na faculdade de engenharia mecânica. Primeiro a Renata conheceu o Rubens, depois a Paula encantou-se pelo Roger e por último, a Cristina conquistou o Julio. Pena mesmo era o Marco, que fora passar uma temporada na Europa e acabara ficando do lado de lá do oceano. Justamente por isso, esta noite seria diferente: finalmente o quarteto estaria completo e as esposas conheceriam o famoso dissidente da turma.
- Acho que tocou sim.
- Deve ser o Marcão.
Julio, o anfitrião da vez, foi abrir a porta
- ...
- Fala cara!
E todos levantarem-se. A comoção foi geral. Não se viam desde... nossa, uns quinze anos. Abraçaram-se, apresentaram a Rê, a Pá e a Cris. 
- Senta. Que saudades. O tempo não passou para você!
- Passou, passou tão rápido que nem percebi
Marco de fato parecia não ter sentido a passagem do tempo. Sua pele tenaz e a barba por fazer conferiam a ele uma aparência bem jovem. Demais até.
- E o que você tem feito?
- Passei os últimos cinco anos viajando pelo continente africano, defendendo algumas causas importantes...
E o recém-chegado passou a hora seguinte discorrendo sobre a guerra, a miséria e as campanhas humanitárias. E - fato intrigante - sequer escutaram a voz das mulheres.
Na realidade, Paula estava corada, Renata não sentia as pernas e Cristina ainda não tinha conseguido piscar os olhos. Quando a pizza chegou, seguiram direto para a cozinha onde, pela primeira vez na última hora, trocaram algumas palavras:
- Que homem é esse?
- Que homem!
- Uau!
Retocaram o gloss, arrumaram os cabelos, encolheram a barriga e voltaram para a sala.
No encontro seguinte, insistiram para que convidassem o Marco. Afinal, ele ainda tinha muito a discorrer. E as noites passaram a ser cada vez mais elaboradas. A pizza virou bruscheta de berinjela, o gloss virou sapato de tecido eco-sustentável e o casa-filhos-empregada, utopia-humanitária-hypster. O novo anfitrião, cada vez mais à vontade, ignorava todos o protocolos da classe média. 
Na segurança da cozinha, as mulheres cada vez mais apaixonadas. 
Não apaixonadas, encantadas. 
Não encantadas, intrigadas.
E discorriam sobre todo o tipo de papo normalmente reservado a banheiros femininos. Não podiam furtar-se de trair em pensamento, imaginando a vida ao lado daquele ser de charme intelecto-neandertal, comendo tofu no café da manhã, amando loucamente segundo os preceitos do tantra e discutindo política em mesas de botecos, dentre outros pormenores fantasiosos.
Uma noite, Marco anunciou que traria sua nova namorada, Luciclei.
- Luciclei?
- Ahã. O que tem? - Perguntou Julio.
- Não, nada.
Quando abriram a porta, Luciclei apareceu, de mini vestido vermelho, cabelo loiro platinado pela cintura e risada extravagante. Durante a noite, discorreu sobre a novela, a nova namorada do Rodrigo Santoro e como evitar rasgos em meia calças. Todos apenas escutavam.
Na realidade, Julio estava corado, Rubens não sentia as pernas, Roger ainda não tinha conseguido piscar os olhos e Marco não desviava o olhar do decote vermelho. Foram apenas interrompidos com um bate-papo vindo diretamente da cozinha. Achavam ter escutado "logo o Marco".
- Que?
- Nada, é que o risoto de pupunha queimou.
- Queimou?
Foi quando Cristina reapareceu, já de pantufas:
- Pois é. Todos comem pizza de catupiry?

*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Com a palavra... GUSTAVO MELO CZEKSTER


"A figura do autor nunca deve se equiparar ou suplantar a da sua obra. Colocar o ser humano na frente da sua criação [é] pedir uma análise redutora, pois o objetivo de toda arte [é] transcender e transgredir os limites que a consciência do artista [gerou]. A obra se [desgarra] do seu autor e [possuí] vida própria. (...) Não quero entender o homem que fez a obra, prefiro ler o livro e tentar interpretá-lo de acordo com a minha vivência. "

- Gustavo Melo Czekster é advogado e escritor, com mestrado em Literatura Comparada pela UFRGS. Em 2011, lançou pela Dublinense o elogiado livro de contos "O Homem Despedaçado". Escreve regularmente para vários sites, dentre os quais a revista literária Literatortura, de onde extraímos esta fala.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Você sabe?!?... O ROMANCE INSPIRADOR DO FILME "APOCALIPSE NOW"

por Mires Batista Bender 

O fillme Apocalypse now, produzido e dirigido por Francis Ford Coppola, estreou em 1979 e marcou época como um grande clássico dos filmes com temática da guerra.

Ambientado na guerra do Vietnã, a história se passa no ano de 1969 e o roteiro acompanha o depressivo capitão do exército americano, Benjamin L. Willard, pelas selvas do Camboja, em sua penosa missão de assassinar o lendário “boina verde” Coronel Walter E. Kurtz, que havia desertado e, adotando apenas seus próprios parâmetros como lei, comandava um exército de rebeldes.

O elenco inclui nomes de relevo como Martin Sheen, interpretando o Capitão Willard; Marlon brando, vivendo o Coronel Kurt, e ainda: Robert Duvall, Dennis Hooper, Laurence Fishburne e um estreante Harrison Ford. A trilha da Banda The Doors, “The end”, usada na abertura do filme, ambienta com perfeição o clima de tensão, solidão e nonsense, apresentado no desenrolar da trama.

Em sua jornada pelo Rio Nung, embrenhados na selva asiática, o capitão Willard e o destacamento de soldados que o acompanha em sua missão irão viver experiências absurdas e opressivas. O clímax dessas situações grotescas e perturbadoras causadas pela guerra será o encontro de Willar com o Coronel Kurt. O capitão descobre que Kurt tornara-se uma figura quase mística, adorada pelos nativos, e irá enfrentar a luta ética de confrontar essa situação com a realidade de seu histórico de eliminar inocentes que contrariam suas ideias, pondo em xeque a legitimidade da própria missão.



O filme de Coppola foi inpirado no romance de Joseph Conrad Coração das trevas publicado em 1902. Coppola aproveitou o ambiente da trama e aspectos da narrativa do romance, mantendo independência quanto ao roteiro.

O cenário do livro de Conrad são as selvas africanas e o enredo habita o universo do imperialismo europeu e sua exploração brutal dos povos colonizados.

Os aspectos incorporados ao filme de Coppola ficam por conta da trajetória do protagonista do romance, Charles Marlow, um marinheiro veterano, ancorado em Londres, que relembra uma viagem de trabalho que fez para uma empresa de extração de marfim. Marlow viaja pelo Rio Congo indo até as profundezas do continente africano, contratado para resgatar um lendário comerciante, Kurtz, que abandonou as atividades mercantis e instaurou uma sociedade independente no coração da áfrica, tornando-se um ícone da região.



O centro do romance é o percurso realizado pelo marinheiro, numa viagem que faz com que a personagem sofra profundas transformações psicológicas, ao mesmo tempo em que denuncia os absurdos da colonização europeia.

Dono de uma prosa densa e articulada com movimentação e minucioso estilo descritivo, Joseph Conrad é talvez, um dos mais viscerais escritores que a literatura ocidental já produziu.

A narrativa de seu Coração das trevas, além de ser uma obra literária marcante forneceu material para que o brilhante trabalho de Copolla confirmasse a máxima que diz: é possível fazer um péssimo filme a partir de um bom roteiro, mas é impossível fazer surgir um filme grandioso de um roteiro ruim. 




* Mires Batista Bender, doutora em Letras pela PUCRS, acredita que as palavras são magia e fez delas seu ofício. Professora de línguas e Literatura criou o primeiro fã-clube de escritor para homenagear a união entre seus maiores prazeres: pessoas e poesia. Interessada e curiosa por todos os temas que fazem fluir o poético, conversa sobre eles nesta coluna...

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Com a palavra... ARIANO SUASSUNA

por Ricardo Machado


Há quase nove anos estive frente a frente com Suassuna. Diante de sua já imensa fragilidade física e de sua extraordinária força intelectual. Aprendi com ele que vaidade é a coisa mais inútil que existe. Por força dos inexplicáveis contratempos tecnológicos, minha pequena matéria que escrevi sobre ele não foi publicada. Na época o e-mail se perdeu e quando foi encontrado já era tarde demais, levando em conta a perenidade do valor notícia. Quase dez anos depois, a velha reportagem ganha fôlego jornalístico da pior maneira possível (ou melhor, afinal nunca saberemos) e, torna-se, de novo, relevante de ser publicada. Suassuna, meu querido, muito obrigado!

Cena de "O Auto da Compadecida", adaptação cinematográfica
da peça teatral de maior s
ucesso de Ariano Suassuna
Regado a água de côco e muito bom humor, aos 78 anos com voz fraca, rouca e baixa, um dos mestres da literatura brasileira, Ariano Suassuna, encantou o público que esteve presente ao Salão dos Espelhos, localizado no Clube do Comércio, no centro de Porto Alegre, durante a 51ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre, em outubro de 2005. Simpático e brincalhão, Suassuna, que ocupa a cadeira 32 na Academia Brasileira de Letras, passeou pela Feira e autografou seus livros.

O luxuoso salão, repleto de espelhos e rebuscados móveis, ficou completamente ofuscado diante do jeito simples de Suassuna falar, aquele modo encantador e nordestino de ser. O autor d’O auto da Compadecida, entre outros, recebeu o público com o bom humor que lhe é peculiar e falou do gosto pela literatura, pela arte, sobre as técnicas e formas de contar histórias e da velhice.

Literatura
Ao falar de literatuta, Suassuna lembra de Os Sertões de Euclides da Cunha, que retrata a saga dos sertanejos na, então, recente república brasileira. Entretanto, ressalta que o texto serve como exemplo de todos os brasileiros. “O homem é o mesmo em todo o lugar, pois independente da classe social ou cultural a que pertence, seus problemas são e serão sempre os mesmos”, avalia o escritor. “Os nossos problemas são: a solidão, o ciúme, o sofrimento e a morte”, complementa.

Suassuna considera Euclides da Cunha o patrono da literatura nacional. Pouco afeito a vaidades, ruboriza-se ao lembrar do elogio que recebeu do notável Carlos Drummond de Andrade. “É preciso merecer a graça da escrita, não é qualquer um que é do seu calibre”, relembra as palavras que ouviu de Drumond décadas atrás.

Arte
O escritor considera que a arte é uma forma precária, mas poderosa de lutar contra a morte. Suassuna parece não compreender a vaidade, seja ela qual for, física ou intelectual. A considera horrorosa e inútil. Argumenta que só depois de muito tempo a gente vai descobrir se algo ficou. “A vaidade é um mal que assola boa parte dos escritores. Ô, raça desagradável”, provoca ironicamente.

Bandeira da Onça - ilustração de Ariano Suassuna retirada do livro A pedra do Reino

Escrita
O escritor explicou algumas de suas técnicas de escrita, sobretudo como criar personagens engraçados. “Quer tornar uma coisa engraçada? Transforme tudo que é figurado em literal”, ensina. A aula, porém, não acabou por aí e ele trouxe outras dicas importantes para quem quer se aventurar na literatura. “Há três formas de escrever humor: uma delas é a repetição, onde o sujeito aparece, some e depois reaparece; há, também, a inversão, que é o caso da pessoa que tenta enganar alguém, mas no final o feitiço vira contra o feiticeiro; e, por último, a interferência, quando dois personagens se encontram com histórias semelhantes que se confundem, sem uma ter relação com a outra”, explica.

Velhice
O escritor considera uma façanha chegar aos 78 anos com bom humor e diz que odeia quando dizem que ele está na “terceira idade”. Para ele, o homem possui cinco idades: infância, adolescência, juventude, maturidade e velhice. “Velho, maduro e podre é o que significa as três fases da teceira idade”, descontrai Suassuna.

- Ricardo Machado é jornalista do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e mestrando em comunicação pela Unisinos. É escritor e membro da Oficina de Produção Literária, na qual desenvolve o projeto de seu primeiro livro de contos.



quarta-feira, 23 de julho de 2014

Ensaio sobre a rotina: BRIE COM MEL

por Nurit Gil

No jantar...
- E ponto. Foi o que respondi.
- Ahã.
- Ahã?
- É. Por que?
- Eduardo, como 'por que'? Você não entendeu a sagacidade do meu comentário? O tom, a pontuação, o timing. Elementos que fizeram a minha resposta ser absolutamente hilária.
- É?
- Você só pode estar perdendo sua tenacidade intelectual
- Você acha mesmo?
- Sim. Você não entende mais as minhas piadas
- Claro que entendo. Simplesmente não achei graça
- Não é graça. É humor inteligente, para refletir e não simplesmente responder com grunhidos.
- Ana Paula, você estava me contando a resposta que deu. Eu entendi. Desculpe não estar refletindo.
- Antigamente você admirava minha perspicácia. Aplaudiria esta mesma resposta e complementaria com "é por isso que eu te amo".
- Ana...
- Costumávamos completar as frases um do outro. Éramos como brie com mel, pastel com caldo de cana, goiabada com queijo.
- Estou apenas cansado, o dia foi puxado. Não é uma crise conjugal, por favor, não exagere.
- E hoje somos como, como...
- Como?
- Manga com leite, churrasco com Chardonay, seu sistema digestivo com azeite de Dendê.
Eduardo caiu na gargalhada. Não conseguia segurar o riso. O tom, a pontuação e o timing tinham sido perfeitos.
- O que foi Eduardo? É sério. Qual a graça?
Ele pensou em responder "é por isso que eu te amo". Mas o dia fora longo.
- Nada. Passa o sal?

*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Com a palavra... JOÃO UBALDO RIBEIRO

"Não sei como esses livros venderam tanto, não faço ideia, as coisas não acontecem repentinamente. Estou com 71 anos, escrevo há praticamente cinco décadas, até mais na verdade, porque acho que meu primeiro conto foi publicado quando eu tinha 17 anos, em 1958, não tenho certeza. Mas, de qualquer forma, são 50 anos. Então nada acontece subitamente.

Para quem tomou conhecimento de minha existência agora, parece que as coisas aconteceram rápido. Para quem lê biografias também. Fulano de tal nasceu em tanto de tanto de tanto, aos 18 anos ingressa na faculdade de tal, forma-se... Mas o que tem no meio do caminho as pessoas não leem, parece tudo fácil, uma transição não traumática. Enfim, eu não sei, não aconteceu de repente, então, nunca houve impacto. Sempre gostei que meu livro vendesse, mas nunca fui um sucesso estrondoso, acho eu. Aliás, acho não, nunca fui. Então, já tive livros que ficaram muitos anos em listas de mais vendidos — mas não estourando. Tenho essa sensação, que estouro nunca fui. Mas talvez por eu escrever em jornal, isso me popularize um pouco, amplie o número de leitores, não sei explicar."


João Ubaldo Ribeiro, falecido recentemente (18 de julho de 2014), foi um dos mais importantes escritores brasileiros do século XX. Suas mais importantes obras, como "Sargento Getulio" e "Viva o Povo Brasileiro", foram sucesso de vendas no Brasil e no exterior. Era membro da Academia Brasileira de Letras. Seu tema mais recorrente era a política, tendo como cenário de seuniverso ficcional a Ilha de Itaparica, na Bahia.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Você sabe?!?... "AO VENCEDOR, AS BATATAS!"

por Mires Batista Bender


Num de seus romances mais famosos, Memórias póstumas de Brás Cubas (publicado em 1881), Machado de Assis apresenta a tese do filósofo Joaquim Borba dos Santos, o Quincas Borba, nomeada Humanitismo.

O Humanitismo – que pode ser visto como um paralelo da teoria da seleção natural, lançada por Charles Darwin entre 1842 e 1844 – está baseado na sobrevivência dos mais aptos e enxerga a guerra como forma de seleção da espécie. A filosofia de Quincas Borba afirma que a substância da qual emanam e para a qual convergem todas as coisas é Humanitas. Portanto, Humanitas é o princípio único de tudo o que existe. Sua teoria é mais amplamente explorada no romance que Machado publica em 1891, Quincas Borba. Para explicá-la, a personagem de Quincas Borba criou a frase: “Ao vencedor as batatas!”

No sexto capítulo de Quincas Borba, Machado de Assis dá voz ao filósofo para que ensine ao amigo Rubião seus conceitos filosóficos:

“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais feitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.

O sentido dessa expressão é sintetizado na trama do romance, em que Machado de Assis apresenta um quadro da vida na cidade moderna com suas possibilidades e armadilhas.

Rubião é um modesto habitante do interior de Minas Gerais, que recebe uma fortuna deixada por seu amigo Quincas Borba e decide ir viver no Rio de Janeiro. Quando chega de trem à cidade em que sonhava “fartar-se do banquete da vida”, traz na bagagem sua ingenuidade, sua inexperiência, e a disposição para pôr à prova a filosofia ensinada por Quincas Borba: o Humanitismo.


Na parada em uma das estações, conhece aquele que seria seu cicerone pelos caminhos da nova cidade, Cristiano Palha, que viaja com a mulher Sofia e que se interessa por Rubião assim que percebe o milionário ingênuo a quem poderia explorar financeiramente. Encantado pela cordialidade do novo amigo e também pela exuberante beleza de sua esposa, Rubião passa a frequentar sua casa e acaba por confiar ao Palha o total controle e administração de sua fortuna.

Assim como este, outros contatos que travará irão expor Rubião às manobras de oportunistas que se aproximarão dele como aves de rapina, dispostos a tomar proveito para si. Um jogo de interesses irá orientar todas as ações das personagens, independentemente de sua posição social ou econômica. Neste contexto, vai se desenrolar um desfile de “máscaras” ostentadas em favor da dissimulação das reais intenções de cada um. De acordo com Raymundo Faoro, Machado “concebeu as estruturas sociais como se movidas por sentimentos e paixões individuais”.


Aos poucos, a vida na cidade grande vai revelando um jogo de aparências e de disputas a que o mineiro de Barbacena não está acostumado. O processo de coisificação a que Rubião é submetido irá levá-lo à degradação, à perda da sua fortuna, de sua identidade e, por fim, da própria sanidade mental. O herói que quer conquistar a grande cidade mostra-se incapaz de decifrar seus códigos e é devorado por ela. Nem mesmo chegará a desvendar o enigma ocultado na filosofia que o amigo Quincas Borba lhe deixou como herança: “Ao vencedor, as batatas!”. A solidão será seu prêmio por uma luta sem sentido, em que a sobrevivência do mais apto não trará glória a nenhum dos combatentes, apenas “batatas”.


Vencido pelos mais fortes, Rubião perde-se entre as engrenagens da máquina da vida moderna e, instintivamente, busca seu primitivo lugar no mundo, o espaço de suas origens. No retorno para a sua provinciana Barbacena, no interior de Minas Gerais, irá procurar o acolhimento que a cidade grande lhe negou. Mas, como nos versos de Drummond, “quer ir para Minas,/ Minas não há mais./ José, e agora?”




* Mires Batista Bender, doutora em Letras pela PUCRS, acredita que as palavras são magia e fez delas seu ofício. Professora de línguas e Literatura criou o primeiro fã-clube de escritor para homenagear a união entre seus maiores prazeres: pessoas e poesia. Interessada e curiosa por todos os temas que fazem fluir o poético, conversa sobre eles nesta coluna...

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Biografia de Torquato Neto chega às livrarias em edição ampliada

por Diego Petrarca

Torquato Neto
Torquato Neto foi um poeta mais situado nas letras das suas canções do que nos livros. Em sua abreviada vida, marcou a poesia e a música brasileira _ um dia após completar 28 anos, em 1972, suicidou-se por inalação de gás. Um dos líderes conceituais do tropicalismo, foi parceiro de músicos como Jards Macalé e Luiz Melodia, compondo faixas emblemáticas como Pra Dizer Adeus (com Edu Lobo) e Louvação (com Gilberto Gil). Reverenciado por poetas como Ana Cristina Cesar, Paulo Leminski e Waly Salomão, abriu caminho para uma geração de novos autores nos anos 1970 com sua poética fragmentária e se tornou referência da contracultura no Brasil a partir da coluna Geleia Geral no jornal Última hora, em 1971, e da idealização da revista de poesia Navilouca.

Essa rica trajetória é narrada em A Biografia de Torquato Neto, originalmente lançada em 2005 e que agora ganha reedição ampliada - o jornalista curitibano Toninho Vaz, também autor da biografia de Paulo Leminski (O Bandido que Sabia Latim), quis relançar o livro que acredita ter passado despercebido à época. Em mais de 400 páginas, apresenta o perfil lírico e conturbado do jovem jornalista Torquato Neto, que, ao mesmo tempo, causa curiosidade e estranheza. Afinal, quem foi esse rapaz, filho único, nascido em Teresina, Piauí, porta-voz da tropicália que rompeu com os amigos baianos e destruiu parte da sua obra literária, foi internado em hospitais psiquiátricos e pensou a poesia para além da página. Mais: provocou o cinema novo e deu régua e compasso para novas expressões poéticas _ era leitor de poesia concreta, Antonin Artaud e Oswald de Andrade e fã de Carlos Drummond de Andrade a ponto de segui-lo pelas ruas de Copacabana. Nenhuma dessas facetas de Torquato escapa do texto minucioso de Toninho Vaz.

O poeta das elipses, dos inesperados curtos-circuitos entre as palavras e da sintaxe descontínua, faria 70 anos neste novembro. Além da reedição do livro de Vaz, está previsto o lançamento de um documentário a respeito de Torquato para 2015. É mais uma chance de mergulhar na obra do autor que tinha, entre suas frases mais conhecidas, este verso do poema Cogito: "Eu sou como eu sou/ pronome/ pessoal intransferível/ do homem que iniciei/ na medida do impossível".

O jornalista Toninho Vaz, autor das
biografias de Leminski e Torquato Neto



Confira entrevista com o autor:



A figura de Torquato é muito vinculada ao tropicalismo. Isso não acabou abafando outras produções do poeta?
O trabalho do Torquato foi interrompido por sua morte precoce, mas falamos dele até hoje, o que revela a importância da sua incipiente produção intelectual. Para Torquato, a experiência tropicalista se soma a trabalhos feitos com músicos de outras áreas, como Edu Lobo e Nonato Buzar.


O que o senhor mais destacaria da obra de Torquato?
Gosto do conceito criado por ele para a revista Navilouca, reunindo jovens poetas daqueles conturbados anos 1970, todos de vanguarda, incluindo os "professores" Décio Pignatari e Augusto de Campos. A revista, entretanto, só foi editada depois de sua morte. Considero um marco na poesia brasileira.

* Diego Petrarca é um dos mais profícuos e talentosos poetas da nova geração no RS, com diversas publicações no gênero. Professor de literatura e redação, ministra Oficina de Poesia na Sapere Aude! Livros. Saiba mais em http://oficinasliterarias.wordpress.com
 
**Texto originalmente publicado em Zero Hora:  http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2014/07/biografia-de-torquato-neto-chega-as-livrarias-em-edicao-ampliada-4540922.html

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ensaio sobre a rotina: MUNDO MODERNO

por Nurit Gil

Vida social virou mídia social
Pessoa virou perfil
Polaroid virou Instagram
Relacionamento sério virou status
Check in virou assunto
Pensamento virou hashtag
Patricinha virou blogueira de moda
Base virou BB cream
Festinha em casa virou petit comité
Pão de ló virou naked cake
Cozinha virou espaço gourmet
... e o brigadeiro, o quindim e a cerveja também 
Pé na água virou deck molhado
Saint Tropez virou cós baixo
E a outra Saint Tropez virou Trancoso
Vida de mãe virou maternidade consciente
Parir em casa virou cool
Tarde livre virou balé, natação, inglês e capoeira
Dor de barriga virou intolerância à lactose
Gripe virou H1N1
Brega virou sertanejo universitário
Super Mario virou Candy Crush
Auto-ajuda virou literatura
Introspecção virou depressão
... que virou Rivotril
Punk virou adjetivo
Bandido virou vítima
E vítima virou culpado
Oposição virou situação 
'O gigante acordou' virou 'Contra Copa'
Petrobras virou Eireli
Ideologia vira, vira, vira, virou

*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Com a palavra... MAURO PAZ

Mauro Paz


Mesmo tendo um público já consolidado na internet, publicar um livro, para mim, foi uma confirmação da escolha de ser um escritor. Aprendi a ler em livros impressos. Tenho uma relação muito forte com eles. Pode parecer antiquado, mas não me sentiria um escritor sem ter o meu nome impresso numa capa. A publicação on-line tem uma distribuição mais fácil e o retorno dos leitores é imediato. A publicação impressa também traz retornos dos leitores, mas são mais espaçados. Publicar um livro impresso hoje é fácil. Agora ser publicado por uma boa editora, chegar nas principais livrarias e ter relevância de venda é outro papo. Para vender o autor precisa ser conhecido e a internet é uma ótima aliada nessa missão. 

- Mauro Paz é um escritor gaúcho, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, radicado em São Paulo. Graduado em Letras, trabalha há muitos anos como redator publicitário. Em 2011, seu livro de contos Por Razões Desconhecidas foi finalista do Prêmio SESC 2011. No ano seguinte, o mesmo livro foi selecionado e publicado pelo Instituto Estadual do Livro do RS.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Você sabe?!?... O APELIDO DE ARTHUR RIMBAUD

Por Mires Batista Bender

Jean-Nicolas Arthur Rimbaud, talvez o mais instigante e versátil poeta simbolista, teve sua obra consagrada como fundadora da poesia moderna. Apesar da efêmera carreira literária, sua produção inspirou o movimento dos “decadentes” e dos Surrealistas além de influenciar músicos e literatos até nossos dias. Com grande talento, capacidade de inovação e vocação experimental, em apenas quatro anos variou entre três estilos poéticos completamente diferentes. O grande poeta, ficcionista e dramaturgo francês, Victor Hugo, o descrevia como um “Shakespeare adolescente”.

A precocidade de Rimbaud deixava seus professores estupefatos, especialmente por sua incrível capacidade de traduzir a poesia latina. Aos quinze anos de idade, Rimbaud já ganhara vários concursos de poemas em latim realizados entre diversas Escolas e começava a escrever poemas em francês, sua língua natal. Desde os tempos de colégio, anunciava aos colegas que quando adulto seria explorador.

Toda a sua obra poética é realizada antes dos vinte anos, quando se retira para a África em uma expedição que põe fim à sua carreira de poeta e cristaliza a fama de peregrino que adquiriu muito cedo. Incansável andarilho, sua trajetória errante pelas cidades francesas e por diversos países da Europa fez com que outro consagrado nome das artes, o poeta Stéphane Mallarmé, o batizasse de “viajante notável”.

Rimbaud adquire o hábito de escapar de casa, desde muito jovem, para evitar a vigília da mãe controladora. Sua vida de passante começa em julho de 1870, quando foge para Paris, mas é resgatado logo na chegada graças à intervenção de um de seus professores. Em outubro, foge novamente, a pé, passando pelas cidades de Fumay, Charleroi e Bruxelas indo chegar a Douai. Durante essas caminhadas, Rimbaud escreve seus belos poemas.

Em 1871, está na “capital do século XIX” acolhido pelo já consagrado poeta francês, Paul Verlaine, com quem frequentará as rodas da elite cultural parisiense e viverá grandes aventuras fazendo andanças por quase toda a Europa. Em julho de 1872 os dois viajam para Arras, em setembro estão em Londres e três meses depois, Rimbaud volta à cidade de sua família, Charleville, atendendo a pedido de sua mãe. Em 1873, retorna a Londres, para reencontrar Verlaine, depois vai a Bruxelas e de volta a Paris. Em 1874, irá novamente a Londres e à França, de onde viajará a Stuttgart, Itália, Viena, Java, Suécia, Dinamarca e Hamburgo. Em outubro de 1878, vai a Gênova, de onde embarca, meses depois, para Alexandria. Depois disso, arranja emprego em Chipre. Em 1879, está em casa de sua família recuperando-se de tifo. Assim que tem uma melhora, viaja para a África onde se torna comerciante de café e, posteriormente, traficante de armas. Vai ao Egito e à Etiópia fazendo uma travessia de vinte dias a cavalo pelo deserto. Ainda vai a Aden, Hugadine, Somália, Etiópia novamente e Cairo, onde comanda uma caravana de duzentos camelos e três mil fuzis. Rimbaud permanece comerciante na África até sua morte aos 36 anos de idade.

Em abril de 1891, é hospitalizado em Aden em decorrência de um inchaço no joelho. Retorna à França quatro meses depois e, em 10 de outubro, é internado no Hospital da Conception, em Marselha, onde morre quatro dias depois em decorrência de câncer na perna.

Quando o andarilho Rimbaud morre, no hospital em Marselha, o funcionário encarregado de seu prontuário de óbito escreve no espaço destinado ao endereço: “de passagem” (Rimbaud não era da cidade). Charles Nicholl, em seu livro, Rimbaud na África, lembra que essa talvez tenha sido a melhor definição do poeta: alguém que parecia estar sempre de mudança, sempre de passagem, sempre solto, sempre fugindo do passado, da poesia e de si mesmo. 




* Mires Batista Bender, doutora em Letras pela PUCRS, acredita que as palavras são magia e fez delas seu ofício. Professora de línguas e Literatura criou o primeiro fã-clube de escritor para homenagear a união entre seus maiores prazeres: pessoas e poesia. Interessada e curiosa por todos os temas que fazem fluir o poético, conversa sobre eles nesta coluna...

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Ensaio sobre a rotina: MAIS PERTO QUE A CHINA

por Nurit Masijah Gil

Não sou exatamente especialista em análises críticas de livros. Leio, gosto, não gosto, amo, reflito. Ponto. Mas quando ele de alguma forma me inspira, fico extremamente tentada a escrever sob a ótica de sua temática, como se pudesse, em seguida, remeter o texto ao autor, dizendo "adorei seu ponto de vista... O que você acha do meu?". Semana passada, com aquela leve e gostosa tristeza de quem despede-se de uma história da qual já era íntima, acabei 'Nu, de botas", sentindo que poderia marcar um café com o Antônio Prata e compartilhar tantas memórias em comum de uma típica infância paulistana. Com os pés no chão, não tenho pretensão real de agendar o bate-papo, mas para a sorte da minha história (meus filhos poderão guardar como recordação), já escrevi e desenterrei uma mão inteira de lembranças. Obrigada, Antônio, por inspirar.
 




 Era um domingo de sol. Minha mãe estava grávida de muitos meses e, precisando de um tempo para descansar (eu demorei anos para entender que mães definitivamente precisam de um tempo para descansar) pediu a meu pai, um homem na faixa dos trinta e muitos anos, industrial respeitado, esportista incansável e com aptidão bastante incipiente na arte de cuidar dos filhos, que fizesse um programa comigo, então com sete anos e com minha irmã, dois anos mais nova.

 Acho que o cansaço de minha mãe era tanto que, mesmo ciente dos riscos da situação, ela conseguiu relaxar numa época em que telefone celular era, no máximo, artefato do desenho dos Jetsons. Até aquele momento, nossa relação com meu pai resumia-se confortavelmente a beijos de boa-noite, almoços de domingo na casa da minha avó e - emoção das emoções - comemorar as vitórias do Brasil na Copa de oitenta e seis com a cabeça para fora do teto solar do Monza dele, rodando pelas ruas de São Paulo.
 A idéia era passear no Parque do Ibirapuera. Delícia. Poderíamos comprar sorvete, alugar uma bicicleta ou brincar em frente ao lago. 


 Talvez seja puro saudosismo, mas o parque nos anos oitenta tinha as árvores mais verdes, o ar mais puro e as ruas mais tranquilas. Passeamos um pouco e, provavelmente no intuito de vencer o tédio, meu pai, sempre criativo, teve uma excelente idéia:


 - Já sei! Vamos brincar de esconde-esconde!


 (Pausa da menina de sete anos que cresceu e hoje tem dois filhos: brincar-de-esconde-esconde-no-parque-do-ibirapuera. Inspira. Expira. Prossigamos).


 - Legal! Gritamos em coro


 - Primeiro você, Nurit. Mas não vai longe, hein?



 O que é longe para uma criança se, cavando um buraco na areia, você podia chegar até a China? Andei por um tempo procurando um esconderijo menos óbvio que atrás de uma das cem mil árvores do parque, até que avistei uma lata de lixo enorme. Perfeito. Detrás dela, conseguia enxergar meu pai e minha irmã, que tinham o tamanho aproximado de duas formigas.


 E eu os observava indo, vindo, indo, vindo, indo... Basicamente, eu tinha arrasado, seria a grande campeã da brincadeira. 


 Não sei quanto tempo se passou. Na minha opinião, o tempo de um recreio. Na do meu pai, que ele deve ter compartilhado na terapia mais tarde, umas três horas e meia.


 Comecei a notar um tom de desespero nos passos dele. Provavelmente, pensei, leonino que é, não gosta de perder. Esperei mais um pouco. Mais um pouquinho ainda (também sou leonina). Quando estava quase dormindo e já com vontade de fazer xixi, resolvi aparecer.


 - Vocês não são de nada, só comem marmelada!


 Nós sabíamos exatamente o momento de ficarmos quietas e, além dos gritos, a cor vermelha do rosto do meu pai indicava que este era um deles. Obedecemos, demos as mãos e baixamos a cabeça.


 - Pai, posso comprar um Dip'n'Lik?


 Não, minha irmã definitivamente não sabia reconhecer estes momentos.


 - Compra, vai, compra logo


 - Oba!


 Então ela mergulhou o pirulito no açúcar, lambeu e, num descuido, deixou tudo cair no chão.


 Berreiro. Chiliques. Entrem no carro. Silêncio. Vamos para casa.


 No final da tarde, espiei por trás da porta do quarto dos meus pais. Minha mãe arrumava algumas roupas, enquanto meu pai, largado na cama, pálido, repetia "sozinho, não mais, hein?!".


 Mal sabia ele que, poucos anos mais tarde, passaria a endossar o grupo dos pais separados que passam, final de semana sim outro não, dias inteiros sozinho com os filhos. Mas daí é outra história. No plural.



*Nurit Gil é uma paulista nos pampas gaúchos, formada em publicidade, mas nunca tendo exercido a profissão. Cronista de corpo e alma, a autora já trabalhou com vendas, marketing e foi mãe em tempo integral. Uma paixão? Nurit gosta de observar gente, escutar conversas, de preferência em ambientes abertos e com uma xícara de café. Sem chantilly. Semanalmente, publica nesta coluna suas impressões do cotidiano porto-alegrense.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Com a palavra... HILDA HILST

Hilda HIlst
Minha linguagem é inovadora sim, e essencialmente poética. Não obedece a convenções gramaticais, tem outro ritmo porque não pensamos nem sentimos de forma simplesinha, organizada ou linear. Sei que não escrevo do jeito que a grande maioria dos leitores está acostumada a ler. A forma é inovadora, mas não incompreensível, dizer que sou incompreensível é bobagem. Eu escrevo em português. Tem um amigo meu (...) que recomenda que eu seja lida em voz alta.

A linguagem, para mim, é o que justifica você contar alguma coisa, porque as histórias, há milênios, são sempre as mesmas. O homem não mudou, nossos questionamentos e pavores são os mesmos, não modificamos nenhuma das nossas realidades essenciais, nossas emoções. Ainda nascemos e morremos como desde sempre, apesar da luta dos cientistas e dos místicos para alterar isso.

- Hilda Hilst foi uma das maiores escritoras brasileiras. Mais conhecida por sua poesia, foi uma grande inovadora em sua arte. O trecho acima foi extraído de uma entrevista da autora à jornalista Nádia Timm. A escritora será tema do próximo encontro do Clube de Leitores da Sapere Aude! Livros, em 23 de julho, com o livro de poesias Baladas.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Você sabe?!?... O POETA QUE INSPIROU GLAUBER ROCHA A CRIAR O PROTAGONISTA DE "TERRA EM TRANSE"

por Mires Batista Bender



O filme de Glauber Rocha, um ícone do Cinema Novo brasileiro, foi produzido em 1966 e estreado em 1967, poucos anos após o golpe militar. Glauber registra a luta das esquerdas brasileiras, contrárias ao golpe, e expressa uma crítica aberta a todos os que participaram do processo de instauração da Ditadura. Suas personagens são como metáforas das diferentes tendências políticas presentes no Brasil daquele período, configurando o próprio mito da luta entre o povo e o poder.

O protagonista, Paulo Martins, é jornalista e poeta idealista, ligado a um político conservador em ascensão, de quem se afasta para apoiar um novo líder político, supostamente progressista. Assim que ganha as eleições seu apoiado se mostra corrupto e controlado pelas forças econômicas locais. Paulo Martins, desiludido, ainda tenta se aliar a outras instâncias políticas, na esperança de operar transformações sociais no País, porém é traído e acaba por fazer opção pela luta armada. 

O filme inicia em flash-back, mostrando a angústia de Paulo Martins, diante do fracasso em realizar seu sonho político. A primeira cena apresenta o excerto de um poema, que surge escrito na tela, tendo ao fundo Paulo Martins portando uma metralhadora em posição que denota desalento e dor.

O poema escolhido por Glauber Rocha, como epígrafe para a cena, é do poeta brasileiro Mário Faustino, “Balada”, publicado em 1955. Faustino (1930-1962) foi poeta, ensaísta, professor, tradutor e jornalista, tendo atuado como adido cultural do Jornal do Brasil na ONU em 1960. O texto mostrado no filme é uma montagem, usando os versos 1, 2, 7 e 8 da primeira estrofe do poema.

O poema de Faustino é uma elegia (canto em honra dos mortos) e refere ao suicídio de um poeta, por não conseguir manter a pureza de sua alma diante da corrupção humana. Glauber Rocha emprega a imagem que o poema projeta, para representar o ambiente de “vitória do caos sobre a vontade augusta” durante os chamados “anos de chumbo” brasileiros.

O roteiro de Terra em Transe traz a presença constante do texto poético, quer como recurso linguístico, pontuação narrativa ou expressando o fluxo de consciência do protagonista. De acordo com o crítico de arte, Paulo Emílio Salles Gomes, “o cosmo sangrento e a alma pura, violência e ternura, são os polos extremos em torno dos quais Terra em Transe gira”. No poema de Faustino o eu-lírico recupera a figura do gladiador romano – que encarava com dignidade o destino fatal – e, “defunto mas intacto”, lida com o fracasso praticando um gesto que entende ser de insubmissão: a própria morte.

Em entrevista à revista Positif, Glauber Rocha declarou: “Mário Faustino foi o maior poeta brasileiro de minha geração. [...] coloquei (o poema) em meu filme, como homenagem; ele era um pouco como Paulo Martins” (publicada em: ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. Rio de Janeiro: Alhambra/ Embrafilme, 1981, p. 89).


* Mires Batista Bender, doutora em Letras pela PUCRS, acredita que as palavras são magia e fez delas seu ofício. Professora de línguas e Literatura criou o primeiro fã-clube de escritor para homenagear a união entre seus maiores prazeres: pessoas e poesia. Interessada e curiosa por todos os temas que fazem fluir o poético, conversa sobre eles nesta coluna...