quinta-feira, 12 de junho de 2014

Simão Botelho e uma paixão maior que a ficção

Simão Antônio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei - Filipe Moreira Dias.

É costume dizer-se que "a vida imita a arte". Tal máxima popular tenta explicar as histórias reais aparentemente incríveis, que igualam ou superam os enredos criados por escritores ao longo dos séculos. Esse excerto, por exemplo, retirado dos assentamentos do cartório das cadeias da Relação do Porto, foi a confirmação que o escritor português Camilo Castelo Branco precisava para acreditar que as histórias contadas por sua tia Rita, que o havia criado, sobre um malfadado tio de nome Simão Botelho, eram verdadeiras.

O romance Amor de Perdição, cujo enredo foi situado por Castelo Branco nos últimos anos do século XVIII, traz em si toda a carga emocional do movimento literário no qual seu autor mergulhou com toda a sua alma - e é, segundo seu autor, a ficcionalização de todos os acontecimentos reais que ele conheceu pelos relatos de família - incluindo uma frase escrita à margem esquerda do assentamento acima, informando que Simão Botelho foi exilado para a Índia em 1807. Talvez seja por esse flerte com a realidade que Amor de Perdição permaneça, até hoje, como o romance em que mais se identifica o Portugal do Romantismo - ou, como o classificam alguns, do Ultraromantismo. Nele há todos os aspectos que tão bem caracterizam aquela escola: a exacerbação das emoções, as reviravoltas do enredo, a entrega dos personagens às suas paixões, a crítica social e até mesmo o nacionalismo tão marcante do Romantismo em todo o Ocidente.

A história da paixão proibida de Simão Botelho pela jovem Teresa, filha de um inimigo político de sua família, não por acaso é conhecida como o Romeu e Julieta português. Há diversas peripécias do romance de Castelo Branco que acompanham o mesmo desenho da trama de William Shakespeare - desde a premissa do amor proibido entre os filhos de famílias inimigas até o assassinato cometido por Simão, que mata um primo de Teresa ao tentar evitar que a moça seja enviada a um convento. Mas a originalidade - caso queiramos desconfiar que a fonte do autor português tenha sido Shakespeare, mais que a história da própria família - é algo de pouca importância quando se está diante de uma obra-prima: o próprio dramaturgo inglês não foi original ao escrever "Romeu e Julieta", tendo se baseado em pelo menos três poemas que lhe antecederam contando a sina de Romeus e Iulieta, que por sua vez sorveram da fonte primeira, as Metamorfoses de Ovídio, na qual há o mito de Píramo e Tisbe.

Amor de Perdição impõe-se pela fina ironia do texto de Castelo Branco, que critica com humor singular a estrutura da família tradicional portuguesa, que nas entrelinhas culpa por precipitar a tragédia dos dois amantes. Mas há também diferenças marcantes no encaminhamento da história dos apaixonados portugueses - a paixão dos dois jovens ganha uma protetora, Mariana, ela mesma apaixonada por Simão, ainda que conformada de que jamais consumaria sua paixão -, e há, enfim, o documento histórico que prova, ao menos, que existiu um Simão Botelho, deportado para a Índia por conta de um assassinato cometido por paixão. Camilo Castelo Branco - ele mesmo preso à época em que escreve o romance, sob a acusação de adultério e rapto de sua amada prima Patrícia Emília - certamente aproveitou-se da proximidade que sentia do tio falecido e seus sentimentos para compor este que é seu maior romance em apenas quinze dias, no cárcere, em condições ideais de criação para um romântico de alma aberta como ele. Infelizmente, o escritor escolheu para si mesmo um fim trágico, digno de um hérói romântico e desesperado, mas não sem antes deixar para seu país o legado de mais de uma centena de obras.

Hoje, a praça em frente à antiga cadeia da Relação do Porto ganhou o nome de Amor de Perdição, primeiro e único exemplo de logradouro público em Portugal a ganhar o nome de um romance. Homenagem merecida a um livro exemplar de uma época e de um grande escritor.

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

  


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