quinta-feira, 29 de maio de 2014

Rassul e a justiça impossível

Atiq Rahimi

A literatura de Atiq Rahimi é profundamente marcada por sua formação como cineasta e sua origem afegã. Radicado na França desde os vinte e dois anos de idade, o escritor tornou-se uma das vozes mais proeminentes oriundas do Afeganistão, cenário de todas as suas obras e fonte inesgotável de suas histórias de um profundo humanismo. Como exilado político, pôde retratar com liberdade os efeitos das inúmeras guerras pelas quais passou o país, mostrando com perturbadora franqueza como diferentes tipos de tirania afetaram a vida social de seus compatriotas. 

Nascido em Cabul, Afeganistão, em 1962, Atiq Rahimi conhece bem os cenários de seus livros. Exilado na França desde 1984, fugindo do alistamento no Exército pró-soviético e da censura, tornou-se doutor em Cinema pela Sorbonne e, como cineasta, dedica-se aos documentários e filmes de ficção, incluindo a versão cinematográfica de seu livro de estreia, Terra e Cinzas (2004), escolhida como representante do Afeganistão no Oscar 2004, e do romance Pedra-da-paciência (2012), indicado do país para o Oscar 2013. Escrevendo em dari, variação do farsi falada no noroeste do Afeganistão, ou em francês (caso de seus dois mais recentes romances), Rahimi mostra um grande domínio da narrativa e um profundo gosto pela intertextualidade na composição de suas histórias.

RAHIMI, Atiq. Maldito Seja Dostoiévski (Estação Liberdade, 2010)
Esse é o caso de Maldito Seja Dostoiévski, seu quarto romance e o mais recente a ser lançado no Brasil, onde toda a sua obra tem sido publicada com regularidade. Nesse romance, Rahimi oferece-nos a história de Rassul, uma espécie de Raskólnikov afegão para quem não há reparação possível por conta de seu crime. Se em Crime e Castigo, o romance dostoievskiano com o qual o livro dialoga ironicamente, o protagonista encontra a redenção, no cenário proposto pelo autor afegão resta apenas a culpa para Rassul: estamos no Afeganistão dos anos 1990, em plena guerra civil, tempos nos quais a Justiça foi eclipsada pela ascensão ao poder dos talibãs, grupo extremista muçulmano que libertaria o país do jugo soviético apenas para mergulhá-lo em tempos ainda mais trevosos. 

Rassul é bibliotecário da Universidade de Cabul e, tendo estudado na Rússia entre 1986 e 1989, guarda em sua casa livros russos e é, por isso, visto como comunista - crime considerado pior que o de ter assassinado uma velha cafetina. A busca de Rassul, corroído pelo remorso e pela culpa, torna-se a de encontrar um juiz justo - e nisso reside a genialidade da releitura de Rahimi, que une nessa jornada de absurdo Dostoiévski, Kafka e Camus em um romance que, segundo o autor, encerra seu ciclo pessoal de obras sobre o Afeganistão. Ao mesmo tempo em que anseiam por suas próximas propostas, seus leitores talvez fiquem desolados com a notícia - já que nunca houve uma voz que nos falasse de seu país natal como a desse autor genial.

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.
  

 




Nenhum comentário:

Postar um comentário