quinta-feira, 3 de abril de 2014

O inferno e as histórias longe do céu



por Gabriela Silva

Daniela Langer
 No inferno é sempre assim- e outras histórias longe do céu, é o nome da coletânea de contos de Daniela Langer. O livro se divide em duas partes: “histórias longe do céu” e “no inferno é sempre assim”, num total de onze narrativas. A obra foi escolhida como primeiro lugar do Prêmio Maíra de Literatura 2012.
“Morrente” é a primeira história, uma pequena profecia: um dia a rotina tomara conta da vida de um casal, nas suas ações, nos seus objetos e fatidicamente nos seus sentimentos.
“Às moscas” é uma narrativa sobre a miserável existência de um homem. Tendo como epígrafe o poema “O bicho” de Manuel Bandeira, o conto mostra a desfavorável luta de um homem faminto com a imagem de uma mosca numa vitrine de doces. À mosca, a fartura; ao homem, a fome corroedora até do juízo.
Dedicado a Caio Fernando Abreu, o conto “para alguém que viu partindo” é sobre a relação de isolamento e necessidade que vivem duas pessoas num relacionamento. Entre os desejos impostos pela vontade humana e a fragilidade de um indivíduo frente ao outro, despem-se as mais singelas intenções.
E um leitor de Cortázar não deixa de sorrir ao começar a leitura de “como que fora do tempo”, quarta narrativa da primeira parte do livro.  Uma lembrança que se desenrola como uma casca de pêssego; no caldo da fruta, o fantástico de Wells e Lugones. Imagens que se complementam como num sonho exótico em fragmentos de tempo que abrangem anos ou apenas o curto momento de acendimento de um fósforo.
Morte, memória, medo e reflexo são as ideias centrais do conto “das horas que se derramam”. O protagonista encontra no reflexo de um vidro a memória que se estende até a morte da mãe.  O percurso pela casa vazia é a distância entre o hoje e a juventude.
“Em todas as portas” é um conto sobre o fim. Um relacionamento que é terminado por telefone, a necessidade da busca de explicações, o passado desbotado, o corpo tentando acompanhar a mente que rápida busca em seus arquivos as exigidas justificativas que o abandonado precisa. Ruas, sons, cheiros, cores e pessoas. A nitidez perdida ao desenfreado passo para algum lugar.
A segunda parte da obra é composta por cinco narrativas, começa com a história de Marianna, uma menina que vive uma adolescência do modo mais tranquilo possível: verão com a família, na praia, brincando com as amigas e aproveitando os dias de sol e chuva que compõem a vida. A chegada do primo Lucas, com seus cabelos revoltos e o dragão tatuado nas costas, é que muda a atmosfera da temporada de estio. Descobriu-se apaixonada; primeiro, pela chegada do primo que ela havia visto poucas vezes. Depois, pelo primo, pela beleza, pela ideia toda que era ele. Mas como a morte é irmã do sono, num sonho de mar e sol, o primo era jogado à areia pelas mãos de outros que o tentaram salvar, “lambido de sol” jazia o primo e seu dragão à beira do verão de Marianna. É essa a história contada em “primo Lucas”.
“No fundo das metáforas” é um conto sobre todas as coisas que pensamos ser de um modo, ditas de outro e vividas de uma terceira e inusitada maneira. Um jogo de futebol, uma chuva que enlameia tudo e um bando de meninos que para se distraírem não se importam de encharcar as roupas e voltar espirrando pra casa. Mas entre um chute e uma goleira, entre uma chuteira e a poça de água da chuva o mundo e o tempo correm a desgosto da vontade da gente.

“No inferno é sempre assim” é uma narrativa permeada de uma tristeza que não se dissolve: um menino e os enganos de um dia quente de verão. O cotidiano inexpressivo e a vontade amarga de vender todos os doces da caixa que carregava consigo é o que move o protagonista ao desfecho do conto, que justifica em cada palavra seu titulo.
Imagens que quase podemos tocar é uma boa definição para o conto “a metade do um”. Nele, a construção narrativa não é apenas densa como engendramento de personagens e de ações, mas como espaço físico. Uma fotografia em que as cores e as sensações de corpos e temperaturas são construídas como se pudessem interagir com o leitor.
A dor e o prazer de encontrar alguém que há tempos não víamos. A estranheza de encontrar por acaso alguém que deixamos não por acaso, mas com toda a certeza da ausência e do adeus. Perceber seu rosto e exercitar a arqueologia em suas rugas e no que o tempo gravou na pele. Essas ações compõem o quadro do conto “A arqueologia das práticas” em que duas personagens se encontram num supermercado em gôndolas de frutas e gavetas de memória.
O que torna esse livro tão interessante e reconhecido? Uma particularidade que é também virtude: o poder da construção de imagens, de símbolos. Daniela Langer cria um universo particular de metáforas, de antessalas de referências, de preferências de leitura e de criação. É seu gênero escolhido o conto, é sua qualidade estética o imagético engendramento de seres e ambientes, de vidas e mortes que ela oferece ao leitor. Cada fragmento de texto criado pela autora é único, seja na escolha verbal apurada, repleta de delicadezas, mesmo quando se refere a dor, a miséria e a morte, ou ainda nas estratégicas imagens que elabora e que ficam reverberando na mente do leitor.

*Gabriela Silva é doutora em Letras pela PUCRS, professora de Literatura e ensaísta. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos e do Sarau das Seis.

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