quinta-feira, 27 de março de 2014

Daimon e os nossos fantasmas



por Gabriela Silva
 
Nelson Rego

Daimon junto à porta é o nome do conjunto de contos escrito por Nelson Rego, um nome a ser lembrado: o livro foi escolhido como o Melhor Livro na categoria conto, pelo júri do Prêmio Açorianos 2011, também segunda colocação no Prêmio Sofia de Literatura 2012 e no Prêmio Maíra de Literatura 2012. Justo, e explicamos. Desde a primeira página o autor percorre diferentes âmbitos, com histórias diversas em que perpassam um sentido obscuro mas identificável pelo leitor.


A primeira história é “Platero e o mar”, em que arte, sexualidade e sedução convivem com jovens e uma artista e uma arquiteta. Inocência e Lara contracenam com o narrador, que, com olhos delicadamente observadores, percebe todas as nuances dos acontecimentos ao seu redor. Inocência é a alegoria sobre seu próprio nome, assim como os deuses eram nomeados e correspondiam ao que “controlavam” ou representavam.
A capacidade de falar com os mortos é o tema de “Recital dos mortos”. Seu Seis, personagem apresentado pela narradora, é um homem que, frequentando uma casa de médiuns, começa a falar com os mortos. Enuncia listas enormes de mortos e das formas como morreram. As listas eram tão grandes quanto às filas que se formavam em torno da casa, filas de pessoas desesperadas por uma notícia de seus mortos. Mas não é apenas Seu Seis que ouve os mortos. Alguém mais vê, ouve e pode entender o que se passa. Até mesmo descobrir que o velho não é apenas um canal de comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
“É pesado esse balde, Chica” provoca o leitor com a sensação do acaso, dos estranhos acontecimentos que provocam nosso conhecimento. Uma menina que busca água todos os dias, num poço distante da casa da avó, é abordada por um homem misterioso, que entabula uma conversa repetitiva e confusa. O caminho desviado, o caminhante sinistro que atravessa o caminho do homem e da menina e a chegada à casa da avó, são os pontos de ancoragem do conto.
O cotidiano de um casal é mostrado no conto “2.222 cisnes brincando de locomotiva e vagões”. Já no título o conto mostra seu tema: o encadeamento de dois seres, a persecutória convivência no casal que dorme abraçado, o desejo que sendo instinto deixa de lado as convenções.
Por sua vez, “A tecelagem do mal” apresenta um casal nada convencional. Um padre chamado ao exercício do exorcismo é envolvido por uma criatura sinistra, nem por isso pouco bela, que lhe aparece no meio do caminho, depois de uma sessão de exorcismo. Ela torna-se sua companheira e “tece” em seu ventre uma filha.
Que tal um diálogo non sense entre duas personagens que apresentam a história de uma terceira? É o que acontece em “Na verdade é isso aí, ó”. O conto é a conversa entre dois amigos sobre uma mulher e a total inaptidão de aprender um idioma. Após percorrer diversos lugares, deixar o filho para adoção e trabalhar como doméstica, a mulher é vista por um dos rapazes como alguém muito interessante. Os sonhos da imigrante são permeados de símbolos que, segundo ele, renderiam um excelente filme.
E lembrando Jorge Luís Borges, o autor no leva a um obscuro bar chamado Nihil, no conto que leva o mesmo nome.  Depois de um dia de trabalho, um homem se depara consigo mesmo e diversas sombras ao visitar o bar. Um lugar que ele estivera à procura a vida toda.
A dicotomia entre juventude e velhice é o que conta a narrativa “Permanecendo” em que uma modelo absorve a arte e torna-se parte dela.
Frases filosóficas perdidas na praia são o mote do diálogo entre as personagens de “A boca do jarro”: uma bela jovem e um velho filósofo. Discutem-se questões sobre a existência, a casualidade e a inconstância dos acontecimentos.
“Um pedacinho do tempo diante dos olhos” é a história que fecha o livro. Retomando as personagens da primeira narrativa, “Platero e o mar”, o narrador agora nos fala da fotógrafa Elena Inéz, e de suas fotografias permeadas de circularidade e vida. A relação entre o narrador e Inocência e a sexualidade mediada pela fotógrafa, como objeto de representação, são os alicerces do conto.
Essas são as histórias que compõem Daimon junto à porta. Um conjunto de contos marcados pela diversidade de suas focalizações, pela capacidade de oferecer ao leitor o mergulho por universos complexos engendrados por seus protagonistas. Na contracapa do livro encontramos a explicação para dâimon: “é a potência para se perseguir o que faz falta”, definição já existente desde os gregos antigos. E é o que fazem as personagens de cada conto que compõe a obra: buscam amor, explicações, inocência, luxúria, desejo, negação, sabedoria e, acima de tudo, a essência da vida.

*Gabriela Silva é doutora em Letras pela PUCRS, professora de Literatura e ensaísta. É uma das coordenadoras da Breviário Cursos e do Sarau das Seis. 

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