quinta-feira, 27 de junho de 2013

O ex-negro e a construção da identidade

Um homem que decide esconder a sua verdadeira identidade após presenciar a mais terrível cena que seus olhos já haviam visto. História polêmica, contada em uma trama repleta de reviravoltas e provocativas discussões sobre a questão racial, Autobiografia de um Ex-Negro é obra canônica e marco da chamada literatura afro-americana. 
Em uma época na qual a literatura fechava as portas para autores negros, o romance é apresentado como uma autobiografia de um homem de pele branca, mas filho de pai branco e mãe negra; transitando nesses dois mundos em que se dividia a sociedade norte-americana, o protagonista inominado conduz o leitor a uma viagem pela experiência de ser negro nos Estados Unidos - da infância pobre na Geórgia à descoberta do racismo em Connecticut, da segregação  do Sul à hipocrisia racial do Norte, da auto-segregação dos negros nova-iorquinos à separação social entre os próprios negros de Boston e Washington, do glamour dos salões europeus às raízes da cultura negra sulista. Conduzido pela música - o protagonista rompe o destino de pobreza e preconceito por conta de seu talento musical -, o leitor acompanha ao som do ragtime, dos Negro Spirituals e do nascente jazz as peripécias de um homem em busca de sua identidade em um universo de expectativas limitadas e práticas cruéis contra aqueles que ousavam desafiá-las. 

Cercado de controvérsia, por expor ambos os lados da questão racial de forma contundente, o livro angaria fãs fervorosos em todo o mundo desde o seu lançamento. Mas foi de forma anônima que James Weldon Johnson publicou, em 1912, essa que foi sua única obra em prosa ficcional, The Autobiography of an Ex-Colored Man – lançada no Brasil com o título Autobiografia de um Ex-Negro. Editado pela pequena casa nova-iorquina Sherman, French and Company, o livro chegou às livrarias em uma época na qual ainda havia poucos escritores afro-americanos publicados. Para Johnson, o anonimato serviria para dar ao pequeno volume ares de realidade e concentrar o foco da atenção dos leitores na grande sátira à qual se propunha o livro, já expressa em seu provocativo título. Contudo, a recepção daquela primeira edição do livro foi pouco calorosa, e a ausência de um autor declarado pode ter contribuído para que a obra passasse quase despercebida pela década de 1910. Contudo, o livro ganhou notoriedade apenas quando foi republicado em 1927 pela Alfred A. Knopf, uma casa editorial conhecida por publicar outros grandes autores do movimento cultural dos anos 1920 conhecido por Harlem Reinassance – e, dessa feita, com os devidos créditos de autoria dados a Johnson. 
JOHNSON, J. W.
Autobiografia de um Ex-Negro.
(8INVERSO)
Ainda que seja uma obra de ficção – apesar do título, trata-se de um romance, e não de uma autobiografia –, Johnson baseou-se em pessoas que conheceu e em lugares e situações vividas por ele mesmo, em um exemplo perfeito de roman à clef. Para a professora Heather Russel Andrade, catedrática em Língua Inglesa e Estudos Afro-americanos da Florida International University, é justamente o caráter confessional dado por Johnson à narrativa que torna ainda mais importante o papel desse romance como primeiro livro de ficção escrito por um afro-americano. “A narrativa mistura gêneros”, diz Andrade, “e da mesma forma que seu narrador é racialmente híbrido, o próprio texto é uma espécie de mestiçagem narrativa”.
Desde a sua primeira edição, contudo, o livro tem causado discussões apaixonadas, sobretudo por retratar um narrador-protagonista cuja escolha final é o passing, tão condenado pelos afro-americanos. Johnson apresenta ao leitor um anti-herói negro – um homem que escolhe renunciar à sua ascendência africana para melhor conviver na sociedade estadunidense. Nesse sentido, o autor também vira as costas para uma tradição de autobiografias de afro-americanos que lhe antecederam, desde a pioneira Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave – um relato comovido de um ex-escravo que foge do cativeiro para tornar-se um dos maiores ativistas dos Direitos Civis no final do século XIX – aos romances autobiográficos de Booker T. Washington e W. E. B. DuBois.

A narrativa de Johnson é também híbrida ao usar diferentes camadas de discurso: há a narração linear da vida do protagonista, da infância como negro à fase adulta, como branco; a partir das peripécias da vida desse negro cuja “alvura [dos] dentes, a beleza [da] boca, o tamanho e o escuro profundo [dos] olhos, e [...] os longos cílios [...] eram capazes de produzir um efeito estranhamente fascinante”, surgem também o discurso filosófico e o político, nos quais se mesclam o pensamento do próprio Johnson, refletido em textos não-ficcionais posteriores, e as reflexões possíveis para um narrador que tenta justificar suas escolhas.

Em Along This Way (1933), a verdadeira autobiografia de James Weldon Johnson, o autor afirma ter escrito o livro com a clara intenção de ser irônico, e que “quando [escolheu] o título, [o fez] sem a menor dúvida de que seu significado estaria claro para todos”. Mas seu Autobiografia de um Ex-Negro, que hoje pode ser lido como um estudo sociológico da vida do negro norte-americano dos anos pós-Guerra de Secessão, foi um ato de ousadia em um período no qual as leis discriminatórias do Jim Crow ainda floresciam em boa parte do país. Até então, “no romance afro-americano”, diz Johnson, “o protagonista quase sempre tinha que fazer uma escolha entre seu interesse próprio e o autossacrifício em nome de erguer sua raça; geralmente, a escolha era pela segunda opção”. Seu protagonista, contudo, escolhe o interesse próprio: bem-estar pessoal e financeiro ao invés de recompensas existenciais relacionadas à ascensão do negro na sociedade. Muitos críticos viram nisso um desserviço de Johnson em favor de uma desagregação dos movimentos de unificação dos negros. Ainda que a condição final do protagonista fosse condenável para ambos os lados da “questão racial”, a rica narrativa de Johnson revela pouco a pouco as razões que conduziram esse homem à sua escolha. Seu efeito é criar nos leitores, se não o sentimento de perdão, ao menos certa empatia por tal gesto – e nisso se revela o escritor genial que era Johnson, cuja obra poética e os ensaios político-filosóficos afastariam da prosa ficcional. Como afirma o poeta e crítico literário David Burn, a respeito do romance de Johnson, “conhecendo hoje os múltiplos obstáculos superados pela comunidade negra, é difícil aceitar a premissa de que seja muito natural casar-se com alguém de pele mais clara para avançar um posto na sociedade; ao mesmo tempo, é também difícil condenar o desejo de viver uma vida relativamente feliz, e certamente mais segura, como um homem branco”.
 
James Weldon Johnson
É importante recordar, contudo, que o anonimato de Johnson também serviu a outra intenção: proteger o próprio autor em um momento da vida americana no qual um escritor afro-americano disposto a retratar personagens negros estava sujeito aos aplausos e apupos apaixonados de toda uma parcela da população ávida por se reconhecer na literatura de seu tempo. Diante de tantas representações caricaturais e depreciativas do negro nas artes – muitas delas citadas pelo autor em seu romance –, corria-se sempre o risco de ter sua obra mal-interpretada – o que, aliás, aconteceria com o romance de Johnson ao longo do século XX.
 
A classificação de Autobiografia de um Ex-Negro como um romance, por conta de seu conteúdo ficcional, leva o leitor a um estranhamento por conta das expectativas que o gênero carrega – e são, em parte, frustradas pela forma de autobiografia escolhida pelo autor. Mas é essa mesma escolha de Johnson que aproxima o livro de outras tantas narrativas épicas – reconhecido, aqui, o exagero de chamar de epopeia a narrativa que acompanha os caminhos trilhados por um mestiço de pele clara em busca de um modo de vida estável em meio à questão racial. Se é difícil encontrar paralelos entre essa obra e os poemas homéricos – apenas para citar as epopeias formadoras da literatura ocidental –, o mesmo não se pode dizer do mundo que motivou seu surgimento: a questão racial nos Estados Unidos do final do século XIX e início do século XX, período em que se passa o romance, tornava aquele mundo quase tão hierarquizado e fatalista quanto o mundo grego que viu nascer a Odisseia. E quem de nós poderá dizer que um jovem negro buscando seu espaço na sociedade dos anos seguintes à abolição da escravatura nos Estados Unidos não vivia perigos e atribulações tão terríveis e assustadoras quanto aquelas de um Ulisses?

A Autobiografia de um Ex-Negro de Johnson ocupa hoje um lugar de destaque no cânone literário afro-americano, em um país no qual as letras e artes ainda refletem, mesmo que sutilmente, o grau de separação étnica subsistente na sociedade. Contudo, é um livro que merece ser lido e apreciado por conseguir transformar o drama pessoal de seu protagonista em uma história de interesse universal, cuja identificação e atualidade não se perderam quase cem anos após sua primeira edição.

*Texto de Robertson Frizero - escritor, professor de Criação Literária e Mestre em Letras pela PUCRS.

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